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As memórias de Tia Henriqueta

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Em 2002, a Associação Ítalo-Brasileira de Içara, recebeu o Grupo de teatro Colettivo Di Ricerca Teatrale, que apresentava a peça Drio La Stela, contando a história da imigração italiana. Durante o dia, integrantes da entidade passearam com os artistas pela cidade, mostrando pontos importantes e turísticos e os membros da associação pediram à tia Henriqueta Biff Dalmolin para acompanhar a troupe.

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Para espanto, e encantamento dos italianos, a tia falava o mais puro dialeto veneto, tal como se manteve nas comunidades rurais catarinenses, desde 1880. Cantava Siamo Partiti como se ela própria tivesse participado das históricas viagens, do século XIX. Não participou, mas herdou toda a emoção dos viajantes.

O primeiro Dalmolin a bater nestas terras foi Boaventura, casado com Regina Cervo, moradores da cidade de Sedico, na Província de Belluno, norte italiano, em 1892. Antes, uma das irmãs se aventurara à Alemanha e não dera mais notícias. Tinha 10 filhos, sendo seis deles com menos de 10 anos. Ainda tinha de levar baú com roupa e algumas tralhas necessárias, entre elas, agulhas, linhas, tesouras, toalhas e roupa de cama.

Para surpresa de Sedico, Dalmolin construiu um carrinho de madeira com quatro rodas. Era ali que acomodava os seis filhos menores, a esposa Regina e os baús. Ele próprio e os meninos, Giulio, com 15 anos e Giuseppe, com 14, puxavam o veículo. Sentado perto da porta, com a alma partida, ficou Gerônimo, o filho em idade militar, proibido de sair da Itália.

Volta e meia paravam exaustos, mas, seguiram sempre assim até Veneza onde o vapor os esperava. Não foi nada fácil, mas nada era fácil, na Itália pobre do século XIX. Embarcaram no navio e trouxeram o carro junto. Os documentos da viagem foram assinados em 1891, pelo Sindaco de Sedico. A família Dalmolin era composta pelos pais, Boaventura e Regina, e os filhos Giulio com 15 anos, Giuseppe 14, Madalena 12, Veronica 11, Pierina 09, Domenica 07, Giovanna 06, Genoveffa 05, Isidoro 03 e Prosperina com apenas 02.

No sul catarinense as autoridades haviam mapeado a região e aberto quatro linhas paralelas ao mar; que ainda hoje ligam, pelo interior, os municípios de Içara e Criciúma. A Primeira Linha partia da rua onde hoje é o Hospital São Donato, em direção a Criciúma, onde fica o quartel do Exército. Como bons católicos edificaram uma igreja cujo padroeiro é São João.

A Segunda Linha partia da estrada onde hoje é a Vila São José, em Içara, até Criciúma, onde encontra a Rodovia Luís Rosso. O padroeiro é o Sagrado Coração de Jesus. Aí fica Morro Bonito, que naquele tempo era chamado Segunda Linha Sangão. A Terceira Linha vai até a rodovia Luís Rosso. Também é conhecido como São Rafael, já que este é seu santo padroeiro. Já a Quarta Linha tem como padroeira Nossa Senhora da Saúde e dá direto na BR-101.

Em Içara, a família Dalmolin comprou terras na Segunda Linha, no morro conhecido como Morro Bonito, que era junto com Morro Estevão. Nem é necessário explicar a origem do nome. A vista é bonita e o nome ficou. Permanece ainda como comunidade rural e integra as terras agricultáveis de Criciúma e Içara intocadas pelas minas de carvão.

Para rever os demais italianos, companheiros de viagem, os Dalmolin, construíram uma picada, ligando as terras de Giulio e Giuseppe até as terras de Arcângelo Ghedin, na Terceira Linha. Quando iam visitar os Ghedin, aproveitavam para visitar a família Votri e Niero.

Desde a chegada, os Dalmolins dedicaram-se a plantar banana, uva e café. Os meninos Giulio e Giuseppe cresceram, casaram e seguiram os passos da família. O Morro Bonito virou uma grande plantação de banana de todos os tipos: caturra, branca, maçã. A banana maçã era a mais difícil, o pé adoecia e morria com facilidade. Então, os Dalmolin passam a plantar banana maçã só para o consumo próprio.

Giulio era justo, honesto, gostava de trabalhar, rezava o terço todas as noites, e levava a sério as coisas de Deus. Para ele todas as crianças eram “picoli” que significa pequeno; a cachaça era chamada de “thik” e fumava cigarro feito de rapé. Tinha lembranças da sua infância na Itália e contava para filhos e netos.

Domênica Dinca, esposa de Giulio, fiava lã de carneiro e algodão, tecia para confeccionar blusas e cobertores para a família. Secava, torrava, e batia café no pilão para vender. As noites eram curtas para tanto trabalho. A nona “Nina” como era chamada, era uma mulher decidida. Se o nono demorasse a chegar ela ia procurá-lo e quando sentia que ele estava chegando se escondia no mato para ele não vê-la.

Giuseppe casou com Augusta Darós e moravam perto, cada um com a sua propriedade. Severino, filho de Giulio, casou com Henriqueta, neta de Giuseppe e dedicaram-se as bananeiras desde 1950. Henriqueta agradava o sogro e lhe levava café na cama todos os dias. O sogro então pedia: “Vede la finestra, varda el tempo”. E lá ia a nora olhar o tempo

Enquanto as bananeiras cresciam em meio a uvas, o café amadurecia e o nôno Bepe rezava o terço, todos os domingos. Seus terços eram frequentados pelas famílias das redondezas. A família Cechella, Zanolli, Giassi, Biff, Da Rolt, Mazzuchello eram habituais visitantes. Depois do terço jogavam bocha. As bolas de pau rolavam de um lado para outro. No meio dos pastos, abertos, ficavam o cantil de água e o garrafão de pinga feito no alambique próprio.

A tarde, já tocados, punahvam-se a cantar todas as músicas conhecidas da “Nostra Itália”, como diziam. Jogavam mora, cantada e chamada. Henriqueta, neta de Giuseppe ficava ali, ouvindo e aprendendo. Trocava olhares com o primo Severino, filho de Giulio e amava-o de todo o coração.

Enquanto disparava olhares com o primo, aprendia com a mãe, Dozolina a fazer pão com batata cará. A farinha de trigo era escassa. O trigo semeado e colhido ali mesmo no morro não era suficiente para o ano inteiro. A sêmola da farinha era o alimento natural. Com as sobras alimentavam as galinhas, alimento de domingo e festa.

Assava o pão no fogão de lenha construído na rua para não haver risco de incendiar a casa. O primo, solícito ajudava a colocar lenha no fogão. O pão de cará era enrolado em folha de caeté e cozido embaixo do fogo “larin”. Era como uma gaveta de tijolo. A brasa ficava em cima e o pão embaixo, dentro da gaveta.

Na chegada da primavera de 1950, nos ventos das transformações havidas no país e no mundo, depois da Segunda Guerra Mundial, Severino e Henriqueta se casam. A noiva viajou na cabina do caminhão até a igreja e os convidados na carroceria. A janta foi na casa de Severino, que era tudo no Morro Bonito mesmo.

Sempre foram festeiros, tocavam gaita, dançavam, faziam baile na própria casa. Eram generosos com quem precisasse e os vizinhos sabiam que podiam contar com a família Dalmolin para qualquer eventualidade. Tinham cavalos, o que era fundamental antes do automóvel. Deixavam os serranos descansar no paiol quando chegavam com as bruacas cheias de queijo e pinhão.

Ela trabalhou nas plantações de banana lado a lado do marido enquanto criou 10 filhos. Foi um casamento em que perdura a saudade. Em casa sempre falaram dialeto veneto, costume que perdura até os dias atuais, para alegria dos Dalmolin da Itália, com quem mantém contato.

A comunidade, crescendo, exigiu do município de Içara uma escola. A primeira professora foi Alzira Giassi. O segundo professor chegava a cavalo e se dispunha a ensinar a criançada de séries diferentes, na mesma sala. Tiveram um professor de talento e visão chamado Zefiro Giassi, hoje grande empresário.

Médico não havia, mas Morro Bonito tinha quem o substituísse: Vitório Zanolli fazia o papel de farmacêutico, conhecia o segredo das ervas. Receitava como principal remédio o sal amargo. Hoje, parte do Morro Bonito é uma reserva ambiental, ainda é uma comunidade agrícola, tem mais fumo do que banana, pois é mais lucrativo. A prefeitura Municipal de Criciúma fez nova demarcação e parte do morro passou a pertencer àquele município. O marco municipal foi colocado na divisa das terras de Airton Mazzuchello.

A escola foi desativada pela Prefeitura de Içara em 1998 por falta de alunos. Tia Henriqueta canta no Coral de Içara e conta histórias dos primeiros tempos com lágrima nos olhos e dá um recado para as novas gerações: “Conversem com seus maridos”. Sente uma profunda saudade do marido que durante 35 anos lhe levou café na cama.

Hoje, os netos Zoide e Zefiro mantêm um comércio de banana conhecido em todo sul do estado. São os sócios proprietários do Dalmolin Bananas. Compram a fruta dos produtores locais e quando chega o inverno importam de São Paulo. Cuidam das câmaras frias, refrigeradas a gás, com ventilação especial para a fruta não cozinhar e amadurecer lenta e saudável.