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Cotidiano

Uma viagem para ficar na história do país

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O primeiro equipamento de mergulho de José Nestor Cardoso foi utilizado de forma amadora na costa do Balneário Rincão e também em Lagoa dos Freitas. A experiência aos seis anos com o conjunto de nadadeiras, máscara e snorkel recebidos do pai serviu para aguçar a curiosidade. Mas a inspiração principal surgiu das imagens do mar em quatro longas-metragens, setenta documentários para a televisão e as invenções do francês Jacques-Yves Cousteau.

Na adolescência, o içarense chegou a pensar em cursar Engenharia Eletrônica. Fez também vestibular para Medicina e Oceanologia. Passou em todos e resolveu mergulhar nos estudos sobre os oceanos na Furg, no Rio Grande do Sul. Por lá ficou mesmo após se formar para ser professor. Numa apresentação sobre a primeira expedição do país à Antártica que viu então a oportunidade de ter o nome incluído na história científica do país.

O problema era garantir espaço no navio da Marinha já lotado. Ele precisou ir a São Paulo falar com o coordenador Motonaga Iwai. Fez isso durante uma viagem já programada com o compromisso inicial de palestrar no primeiro Encontro Brasileiro de Mergulho Amador organizado pela Associação Cristã de Moços em setembro de 1982. De quebra conseguiu a última vaga. Todavia, teve que readaptar os planos sobre a função que teria pela frente.

Aos 28 anos, solteiro, José Nestor já lecionava Técnicas de Mergulho. Pela especialidade que tinha, a intenção era desenvolver um estudo sobre o comportamento dos equipamentos de mergulho em águas polares. Todavia os recursos financeiros estavam escassos. Participou então com a responsabilidade de fazer parte da pesquisa de aspectos físicos como, por exemplo, a temperatura da água e os nutrientes contidos nela.

A partida do navio oceanográfico professor Wladimir Besnard ocorreu, no dia 20 de dezembro, em Santos (SP). José Nestor embarcou somente no dia 26 em Rio Grande (RS). No espaço de 50 metros da popa a proa havia laboratório químico, biológico e físico, além de dois refeitórios e a casa de rádio. “Os camarotes dos pesquisadores eram para duas pessoas. Eu dividia com Lauro Madureira, oceanógrafo da Superintendência de Desenvolvimento da Pesca”, relembra.


A equipe científica chefiada por Motonaga tinha também o bioquímico Phan Van Ngan (USP); geólogo Moysés Gonsalez Tessler (USP); químico Oswaldo Ambrósio Jr (USP); meteorologista Rubens Junqueira Villela (USP); engenheiro eletrônico Luiz Vianna Nonato (USP); biólogo Frederico Brandini (UFPR); oceanólogo Lauro Antoni Madureira (Sudepe); médico Renato Amaral (UFRGS); além dos técnicos Clarimundo de Jesus (USP) e Lourival Pereira de Souza (USP).
“Passamos o Réveillon ao largo das Ilhas Malvinas. Chegamos a ser interpelados por uma fragata inglesa, pois a guerra havia encerrado meses antes. No dia 4 chegamos a Ushuaia, na Argentina. Havia vento e onda. Esperamos o tempo melhorar até o dia 6 e ainda passamos pelo Estreito de Drake antes do primeiro contato com a Antártica, na Ilha de Smith, no dia 9”, conta. Eram ao todo 12 pesquisadores e 24 tripulantes a bordo.

“Alguns dos icebergs que encontramos tinham extensão superior a 10 campos de futebol e 100 metros de altura. O que víamos fora da água era só 10%. E quanto mais antigo, mais azul. É um lugar muito bonito, contudo, desolado. É tão isolado que no inverno só chega avião. No verão pegamos campos de gelo que o navio não podia avançar. Foi preciso recuar”, coloca. A coleta de amostras e análises durou 13 dias.

“Trabalhávamos sem cinto de segurança ou qualquer colete. Três minutos na água já seria suficiente para perder os reflexos. Foi uma equipe com muita experiência em convés devido aos riscos. Hoje é muito mais seguro”, ressalta. Segundo o pesquisador içarense, o trabalho era pesado. A maior parte do tempo de folga servia para dormir. E não tinha noite. A cada vez que o Sol chegava próximo do horizonte, subia novamente.

O reconhecimento do setor noroeste da Antártica serviu para selecionar o local onde seria instalada a futura base Comandante Ferraz na Ilha Rei George, montada em 1984 e permanentemente ocupada a partir de 1986. O continente possui as maiores reservas de gelo (90%), água doce (70%), além de recursos minerais e energéticos.
Uma parte da jornada foi acompanhada à distância por autoridades no Barão de Teffé. O navio quebra-gelo dinamarquês adquirido pela Marinha do Brasil autuou na Antártica até 1994. “Tivemos a oportunidade de ir a três bases abandonadas após uma erupção em 1970 na Ilha Decepção. Em alguns locais a água era quente por causa do vulcão. Na Ilha Rei George visitamos também bases da Argentina e Polônia”, relembra com alguns dos registros literários em mãos.

A receptividade dos poloneses foi retribuído com uma refeição no navio. Eles receberam ainda uma caixa de vinho de José Nestor. Outras duas caixas foram emprestadas para o médico da equipe tupiniquim. Apenas uma foi preservada até o retorno. Já o whisky teve uma duração mais breve. Foi consumido com gelo de um dos icebergs. “Era efervescente pela quantidade de ar liberado durante o derretimento no copo”, atesta.



Na bagagem foram também 300 garrafas de champanhe com mensagens para determinar as correntes. José Nestor não sabe se alguma chegou a ser encontrada. “O maior legado da viagem foi a promoção do Brasil à categoria de membro consultivo no Tratado da Antártica. É um continente importante, pois influi nas correntes marinhas, no clima e guarda um pouco sobre a origem da Terra. Me surpreendeu a quantidade e variedade de organismos”, enaltece.

A primeira parte dos experimentos terminou com o retorno no dia 19 de janeiro de 1983 para que uma nova equipe desse continuidade a partir do Chile. José Nestor deu aula até se aposentar em 2000. Também ministrou cursos de mergulho. E ainda mantém a atividade como lazer. Os equipamentos estão preservados junto com fotos que relembram a vanguarda estampada no passaporte com o carimbo que ele mesmo fez no navio percussor.

“No mergulho existem novos equipamentos de circuito fechado que só se tornaram comuns nos últimos 15 anos. Há uma variedade e sofisticação que praticamente são personalizados. A utilização de misturas respiratórias para aumentar o tempo de mergulho ou a profundidade não existia quando iniciei. Na oceanografia também houve um grande avanço tanto na coleta de dados quanto no processamento através de recursos eletrônicos”, resume o professor aposentado, residente em Içara desde 2008, após 36 anos no Rio Grande do Sul.

“Uma coisa que eu tenho é satisfação e orgulho de ter participado de forma muito intensa na formação de cientistas que hoje desempenham papel importante na compreensão dos oceanos, mares, rios e lagoas em várias partes do mundo”, confessa. “Posso considerar que minha carreira foi um sucesso. E muito divertida”, garante o pioneiro em mergulho reconhecido em 2012 no Professional Association of Diving Instructors Festival. Aos 61 anos, o oceanólogo apaixonado também por fotografia guarda imagens e histórias da experiência em pelo menos 35 países.

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