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Política

Crônica: Sobre venda de áreas verdes

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Recentemente fui informado da pretensão do Prefeito Murialdo Canto Gastaldon, de desafetar e vender diversos imóveis (inclusive áreas verdes) do Município a particulares, sob motivo de ausência de disponibilidade financeira do referido Município de Içara. Uai, diria o bom Mineiro, mas isso não pode.

É que as áreas verdes, inicialmente propriedades privadas, são transferidas compulsoriamente ao domínio público municipal quando da aprovação e registro de loteamentos, como um mecanismo compensatório pelo impacto ambiental oriundo do avanço especulativo imobiliário. Tornam-se, assim, um patrimônio de toda a comunidade, bens de uso comum do povo, plenamente revestidos, à princípio, pelo manto de proteção da inalienabilidade e da impenhorabilidade.

Muitos municípios brasileiros, ao invés de proteger e desenvolver essas áreas verdes, verdadeiros núcleos de equilíbrio social e ambiental urbanos, passam deliberadamente a remover a destinação pública que lhes reveste, com o inescusável propósito de negociá-las junto á iniciativa privada ou a outros entes públicos. O Nó górdio da questão resume-se em saber: Pode a municipalidade desafetar tais áreas verdes, em virtude do invocado interesse público (será que existe), mesmo em prejuízo do equilíbrio, integridade e preservação do meio ambiente natural urbano?.

A Lei do Parcelamento do Solo Urbano exige do loteador a transferência compulsória de áreas verdes ao patrimônio municipal. Por quê? Por considerar o ente público mais habilitado à defesa do interesse coletivo de preservar e manter tais áreas verdes. Esta é a finalidade da lei: proteger áreas verdes a fim de garantir a qualidade de vida dos cidadãos. O mesmo se diga com relação ao plano diretor, com as novas diretrizes do Estatuto das Cidades. Ambos os diplomas são juridicamente eficientes quanto à “preservação dos poucos espaços verdes existentes nos grandes centros urbanos.

Quando a municipalidade desvia-se da finalidade legal, comete grave dano, indo de encontro ao princípio da legalidade. Repare-se no conteúdo do art. 17 da Lei Federal n. 6.766/79:

Art. 17. Os espaços livres de uso comum, as vias e praças, as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo, não poderão ter sua destinação alterada pelo loteador, desde a aprovação do loteamento, salvo as hipóteses de caducidade da licença ou desistência do loteador, sendo, neste caso, observadas as exigências do Art. 23 desta Lei.


Segundo Paulo Affonso Leme Machado, comentando o referido artigo 17, ao vedar expressamente ao loteador a disposição sobre as áreas livres e demais constantes no loteamento aprovado, também vedou, de forma implícita, “a livre disposição destes bens pelo Município”. (Direito Ambiental Brasileiro. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2004, pág. 412):

“Os espaços públicos (vias jardins etc) não são expropriados pelo Município, mas transferidos gratuitamente pelo proprietário do loteamento; é que o Município tem competência vinculada para gerir essa parte do loteamento. O vínculo legal é aquele constante do memorial descritivo e do desenho apresentado, documentos esses que já haviam sido submetidos à aprovação do próprio Poder Público municipal. Retirou-se de modo expresso o poder dispositivo do loteador sobre as praças, as vias e outros espaços livres de uso comum (art. 17 da Lei 6.766/79), mas de modo implícito, vedou-se a livre disposição desses bens pelo Município. Este só teria liberdade de escolha, isto é, só poderia agir discricionariamente nas áreas de loteamento que desapropriasse e não naquelas que recebeu a título gratuito. Do contrário, estaria o Município se transformando em Município-loteador através de verdadeiro confisco de áreas, pois receberia as áreas para uma finalidade e, depois, a seu talante as destinaria para outros fins.”


Nesse sentido, o voto condutor do Resp 28058/SP, Segunda Turma, Relator Min. Adhemar Maciel, DJ 18.12.1998, do qual se extrai o seguinte excerto:

“Insurge-se o recorrente contra a interpretação que considerou tal dispositivo [art. 17 da Lei 6766/79] aplicável também ao Município. Não resta dúvida de que a norma se dirige prioritariamente ao incorporador. A questão de fundo está, no entanto, em saber-se se a finalidade da estatuição legal não revela alguns princípios que devem ser aplicados à Administração. Para tanto, creio que o problema se desdobra em duas questões: qual o espírito da norma em apreço, e a questão da autonomia da Administração municipal para alterar a destinação do bem público, depois que fica incorporado ao patrimônio do Município.

O art. 17 não pode ser compreendido isoladamente, ao contrário, impõe-se uma interpretação sistemática com os arts. 4º, 22 e 28 do mesmo diploma. (...).

Essa estatuição pretendeu, sem dúvida, vedar o poder de disponibilidade do incorporador sobre essas áreas. Coloca-as, portanto, sob a tutela da Administração municipal de forma a garantir que não terão destinação diversa. Este parece ser o espírito da lei. (...).

Como salientei, o objetivo da norma jurídica é vedar ao incorporador a alteração das áreas destinadas à comunidade. Portanto, não faz sentido, exceto em casos especialíssimos, possibilitar à Administração fazê-lo. Ademais, a importância do patrimônio público deve ser aferida em razão da importância da sua destinação. Assim, os bens de uso comum do povo possuem função ut universi. Constituem um patrimônio social comunitário, um acervo colocado à disposição de todos. Nesse sentido, a desafetação desse patrimônio prejudicaria toda uma comunidade de pessoas, indeterminadas e indefinidas, diminuindo a qualidade de vida do grupo. Dessarte, existe uma espécie de hierarquia de bens públicos, consolidada não em face do seu valor monetário, mas segundo a relação destes bens com a comunidade. Por isso, não me parece razoável que a própria Administração diminua sensivelmente o patrimônio social da comunidade. Prática, aliás, vedada por lei, pois o art. 4º impõe áreas mínimas para os espaços de uso comum. Incorre em falácia pensar que a Administração onipotente possa fazer, sob a capa da discricionariedade, atos vedados ao particular, se a própria lei impõe a tutela desses interesses.” Grifei o texto.


De fato, não obstante a referida norma jurídica se dirija expressamente ao loteador, a sua interpretação teleológica conduz à ilação de que a atuação do município encontra-se limitada. É inaceitável que a administração, cujo dever primordial é o de fiscalizar a aplicação da norma, torne-se a primeira a violá-la.

Dessa maneira, antevendo a lei os deletérios efeitos da malversação das áreas verdes por particulares e, por igual, o óbvio malefício ao interesse público, institucionalizou parte do loteamento, convertendo-o em bem público de uso comum do povo, sob tutela e proteção municipal. Pelo menos, deveria.

Tais áreas foram gravadas com destinação específica, qual seja, a de promover a consecução das metas socioambientais das cidades. Conclui-se, assim, que é defeso ao ente municipal alterar levianamente a destinação de tais áreas, ainda que por lei específica.

Nesse sentido leciona Lúcia Valle Figueiredo (FIGUEIREDO, 1980 apud SOARES, Luís Eduardo Fonseca. Da impossibilidade de desafetação de áreas verdes e institucionais. 2002. 71 f. Monografia (Bacharelado em Direito). – Faculdades Integradas “Antônio Eufrásio de Toledo”, Presidente Prudente, 2002):

Assim sendo, é dever do Município o respeito a essa destinação, não lhe cabendo das às áreas que, por força da inscrição do loteamento no Registro de Imóveis, passaram a integrar o patrimônio municipal qualquer outra utilidade. Não se insere, pois, na competência discricionária da Administração resolver qual a melhor finalidade a ser dada a estas ruas, praças, etc. A destinação já foi preliminarmente determinada.


Realmente é de todo insensato imaginar que as áreas verdes, repassadas compulsoriamente ao patrimônio municipal quando do registro de loteamentos, pudessem ser livremente negociadas pelo município. Tais espaços são bens públicos da mais alta importância, pois cumprem a função socioambiental das cidades. Trata-se de uma compensação ecológica urbana pelo impacto ambiental gerado pela especulação imobiliária.

O Poder Público municipal, ao promover a desafetação das referidas áreas verdes, sob qualquer pretexto, mesmo pelo suposto “interesse público”, age em total desconformidade com a legalidade e a moralidade administrativa, além de falhar em sua missão constitucional de defender o meio ambiente, estampado no artigo 225 da CF/88.

Portanto, não pode o município dispor desses espaços, porque senão estaria “se transformando em Município loteador através de verdadeiro confisco de áreas, pois receberia as áreas para uma finalidade e, depois, a seu talante as destinaria para outros fins”. (Paulo Affonso Leme MACHADO, op.cit., p.412).

Assim, quando o art. 100 do Código Civil Brasileiro estampa que os bens públicos podem perder a inalienabilidade nos casos e na forma que a lei estabelecer “a alienação ou o comércio dos bens públicos só pode ser entendida corretamente se se levar em conta a diferenciação feita pelo art. 99 do próprio CC. Essa diferenciação está assentada fundamentalmente na destinação dos bens. ( Ibid., p. 414).

Colaciona-se o posicionamento de Toshio Mukai (Direito urbano-ambiental brasileiro. 2.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: pág.414-415):

Enquanto tal destinação de fato se mantiver, não pode a lei efetivar a desafetação sob pena de cometer lesão ao patrimônio público da comunidade, [...] se a simples desafetação legal fosse suficiente para a alienação dos bens de uso comum do povo, seria possível, em tese, a transformação em bens dominiais de todas as ruas, praças, vielas, áreas verdes, etc. de um município e, portanto, de seu território público todo, com a conseqüente alienação (possível) do mesmo, o que, evidentemente, seria contra toda a lógica jurídica, sendo mesmo disparate que ninguém, em sã consciência, poderia admitir. Na prática, difícil é encontrar-se o mau administrador ou o mau legislador agindo com tal clareza no desvirtuamento dos bens de uso comum do povo: o grande perigo é a ação a longo prazo – hoje uma praça, amanhã um espaço livre, depois de algum tempo outra praça, finalizando-se por empobrecer totalmente a comunidade.


No tocante às áreas verdes incorporadas ao domínio público municipal por força de loteamentos, trata-se de patrimônio comunitário de valor inestimável. Sua desafetação e posterior negociação é de todo desarrazoada; é ilegal. Acima de tudo, vai de encontro aos nobres princípios constitucionais que tutelam o meio ambiente e as políticas urbanas, sendo um grave retrocesso na efetivação dos direitos fundamentais de natureza difusa.

O ente municipal deve zelar pelas áreas verdes instituídas em projetos de loteamento. Não pode desviar a destinação socioambiental desses espaços públicos de uso comum do povo. Portanto, o Município não pode alienar, doar, dar em comodato, emprestar a particulares ou a entes públicos as áreas verdes e as praças.

Destituídas de sua destinação pública, as áreas verdes, fontes maiores do equilíbrio psíquico, social e ambiental urbano, são negociadas como se fossem um imóvel qualquer. O prejuízo socioambiental segue-se inexoravelmente. Agindo de maneira leviana e corriqueira, a municipalidade descura-se de sua missão constitucional e legal de preservar esses espaços verdes. Ao invés disto, torna-se o maior algoz do meio ambiente, configurando-se nítido desvio de finalidade.

Tamanha irresponsabilidade administrativa vendo sendo rechaçada por nossos tribunais, os quais reiteradamente vêm declarando a inconstitucionalidade dessas normas municipais. Confira-se:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ÁREA VERDE. DESAFETAÇÃO. LOTEAMENTO. LIMINAR. LEI DE EFEITO CONCRETO. CONTROLE.

1. A vedação legal de concessão de tutela antecipada contra o Poder Público deve ser interpretada restritivamente. Precedentes do STJ. Hipótese em que a liminar deferida assegura a integridade de área verde desafetada.

2. A lei que desafeta área verde incorporada ao patrimônio municipal por ocasião da implementação de loteamento é lei de efeito concreto que pode ser objeto de controle via ação civil pública.

3. Prima facie, o Município não tem autonomia para desafetar área verde destinada em loteamento em cumprimento à Lei nº 6.766/79, ainda que incorporada ao patrimônio público. Recurso desprovido. (TJ-RS, AI 70023174865, 22. C. Cív., Rel. Des. Maria Isabel de Azevedo Souza, julgado em 27.03.2008).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. DIREITO AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESAFETAÇÃO DE BEM PÚBLICO. ÁREA VERDE. LOTEAMENTO. Verossimilhança da alegação de impossibilidade de desafetação de bem público de uso comum do povo, afetada com finalidade específica, incorporado ao domínio do município, para transferência de áreas verdes a particulares em face de loteamento popular. Riscos de danos irreparáveis para o meio ambiente urbano. Inteligência dos artigos 4º, inciso I, 17 e 22, da Lei nº 6.766/79, artigos 191 e seguintes da Lei Estadual nº 11.520/00, da Lei nº 10.257/01, que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, e artigos 99, inciso I, e 100, do Código Civil. DECISÃO REFORMADA. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. (TJ-RS, AI 70020189791, 3. C. Cív., Rel. Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, julgado em 11.10.2007).

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ÁREA DESTINADA AO USO COMUM DO POVO. DESAFETAÇÃO. SÚMULA 7/STJ.

1. Concluindo o Tribunal a quo, com base nas provas dos autos, a ocorrência de desvio de finalidade do ato impugnado e de possíveis danos ambientais em consequência da desafetação do bem público, impossível, em sede de recurso especial, proceder o reexame desta questão.

2. Por força do verbete sumular 7/STJ, cabe às instâncias ordinárias o exame da matéria fática, reexame vedado em sede de Recurso Especial.

3. Recurso não conhecido. (STJ, REsp 77.721/SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, 2.T., julgado em 25.02.2003).


A preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado é um dever de todos, dirigindo-se universalmente aos particulares è a administração pública em todos os níveis, conforme dicção do artigo 225 da Constituição Federal de 1988.

Não se pode admitir no atual estágio do constitucionalismo que a referida norma seja apenas uma pauta política desprovida de juridicidade. Ao invés disto, é norma de eficácia plena, emanando força jurídica máxima, a ponto de coibir quaisquer abusos legislativos ou administrativos ao meio ambiente.

O artigo 22 da Lei 6.766/79 (Parcelamento do Solo Urbano) exige do loteador a transferência compulsória e gratuita de áreas verdes ao patrimônio municipal. Tal ocorre porque o ente público deve – deveria - ser mais habilitado à defesa, à preservação e à manutenção de tais espaços, verdadeiros oásis ecológicos que fomentam o equilíbrio socioambiental do meio urbano. A partir daí, tornam-se bens de uso comum do povo, na precisa definição do artigo 99 do Código Civil Brasileiro, uma vez que plenamente afetados a uma destinação pública específica, qual seja, a de realizar a função socioambiental das cidades. Tornam-se, portanto, inalienáveis e impenhoráveis.

O artigo 17 da Lei 6.766/79, ao vedar expressamente ao loteador a disposição sobre as áreas livres e demais constantes no loteamento aprovado, também vedou, de forma implícita, a livre disposição destes bens pelo Município. Em outras palavras, a respectiva área foi concedida à municipalidade a título gratuito, por força de aprovação de loteamento, com a finalidade específica de se tornar um ponto de lazer e de compensação ecológica pelo impacto ambiental gerado pela especulação imobiliária.

O ente municipal está obrigado a zelar pelas áreas verdes. Não pode desviar a destinação socioambiental desses espaços públicos de uso comum do povo, seja por meio de concessão de uso a terceiros, seja por sua conversão, por meio de lei municipal, em bens dominicais, os quais podem ser negociados livremente.

Deste modo, advoga-se pela impossibilidade de desafetação de áreas verdes
incorporadas ao domínio municipal por força de aprovação de loteamento. A lei municipal que promova tal temeridade está eivada de notória inconstitucionalidade, devendo ser expurgada do ordenamento jurídico, com efeitos retroativos. O Poder Público, ao se posicionar a favor da desafetação de tais áreas, age em franca violação ao princípio da legalidade e da moralidade administrativa, acercando-se da mais nefasta espécie de desvio de finalidade.

Afinal, quem é este subscritor para dizer ao Excelentíssimo Senhor Prefeito Municipal de Içara o que ele deve fazer. Isso não me compete, se não fui chamado para tal. Todavia, o que ele não deve fazer, aí tenho direito de dizer, porque o faço com embasamento legal, sedimentado em judiciosos doutrinadores e decisões dos Tribunais Pátrios, inclusive do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Alô MIV – Movimento Içarense pela Vida, tem alguém aí, alô, alô ... desligaram.